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As funções sociais em transformação dos museus de arte
Pela Dra. Elizabeth Rodini
Uma grande loja de departamentos… se assemelha mais a um bom museu de arte que qualquer dos museus que já criamos.
— John Cotton Dana, “The Gloom of the Museum”, 1917
Provavelmente, quando você era jovem, preferia passear no shopping center local que no museu de arte local. John Cotton Dana, diretor fundador do Museu Newark em Newark, Nova Jersey, foi um inovador de museus radical do início do século XX, que queria saber o porquê. O que o mundo do varejo estava fazendo que era tão atraente para o público em geral? Que lições os museus poderiam tirar do varejo para se tornarem organismos socialmente "ativos e influentes"?
Dana achava que, como nos estabelecimentos de varejo, os objetos de museu precisavam ser interessantes, dispostos de forma atraente, com informações livremente disponíveis, e exibidos em rotação regular para fazer as pessoas retornarem. Essas eram ideias bastante novas em 1917, e um século mais tarde elas ainda prevalecem, mas a ideia do museu como um bem social nunca foi estável e continua a evoluir. A loja de departamentos é apenas uma analogia útil. Hoje as pessoas querem museus de arte que atuem como escolas, centros cívicos, promotores econômicos, refúgios, e praças, lançando uma luz brilhante nas necessidades das comunidades e nas expectativas que elas muitas vezes têm de seus museus.
Museus e elites
Os museus Europeus e Norte Americanos têm suas raízes em coleções pessoais da elite, que eram abrigadas em espaços privados e abertos apenas para um círculo restrito de amigos e conhecidos, ou aqueles com cartas de apresentação apropriadas, quase sempre homens ricos, instruídos. Embora a gama de visitantes tenha se ampliado um pouco com a fundação de museus públicos no século XVIII, estes permaneceram exclusivos e hostis para a maioria das pessoas.
O Museu Britânico, por exemplo, fundado em 1753 como um presente para a nação para ser “visitado e visto por todas as pessoas desejosas de vê-lo e explorá-lo”[1], exigia até 1810 que os pedidos de ingresso fossem apresentados com antecedência, por escrito. Um incisivo guia de Londres lamentava que "garotas ociosas, ou ..., ainda pior, homens e mulheres ociosos, possam ir e admirar, por alguns minutos, ...mas as imagens vistas serão apagadas em breve de suas memórias, sendo seus entendimentos tão obscuros quanto suas memórias não retentivas". [2] Os museus pouco contribuíam para ajudar em termos de rotulagem ou interpretação, e prevalecia essa impressão de visitantes muito despreparados e pouco inteligentes para se beneficiarem das coleções de um museu.
Ironicamente, muitos museus públicos foram fundados com a intenção de combater essas deficiências detectadas, ou seja, elevar os níveis de educação e cultura gerais em apoio a uma cidadania informada, engajada. Na França, por exemplo, o Louvre expunha uma mensagem clara de identidade nacional ligada à herança cultural: a singularidade da arte Francesa, seu lugar no patrimônio artístico da humanidade, e assim por diante. No entanto, o espaço do museu permaneceu, e até certo ponto ainda hoje permanece, principalmente sob o domínio da elite.
O mercado como fator da mudança
Na Grã Bretanha do século XIX, grande parte da preocupação em torno de quem poderia e deveria visitar museus se concentrou em questões econômicas e de classe, na medida em que a Revolução Industrial transformou radicalmente a natureza do trabalho e, por extensão, as estruturas urbanas e sociais. Os industriais Britânicos se sentiam pressionados por bens importados a granel das colônias (algodão Indiano, por exemplo) e por inovações tecnológicas em países Europeus rivais (especialmente a França) que ameaçavam afastar seus próprios produtos. Uma solução era dar aos seus cidadãos operários melhor acesso a bens importados para que pudessem estudá-los, imitá-los e por fim desafiá-los. Ao mesmo tempo, exibições exuberantes de mercadorias iriam estimular o apetite do consumidor, aumentando a demanda e portanto também a produção.
Dessas pretensões nasceu a primeira feira comercial internacional, a Grande Exposição de Londres, realizada em 1851 no recém-construído Palácio de Cristal (acima). Esta estrutura imensa de ferro e vidro era por si só uma maravilha, na época o maior espaço fechado do mundo, abrigando mais de 100.000 produtos. Eles foram divididos pela geografia (países e colônias) e por tecnologia, e os organizadores procuravam equilibrar o espetáculo e a surpresa com uma agenda educativa. Notadamente, seu público alvo incluía os artesãos que haviam sido excluídos dos museus da elite mas que se juntaram entusiasmados às multidões na Exposição.
Até então, os museus não davam muita atenção ao planejamento; supunha-se que os visitantes educados permaneceriam engajados por seu interesse inerente nos próprios objetos. Mas nesta gigantesca feira comercial, foi dada grande ênfase à instalação, chamando a atenção para o acabamento, os materiais e a beleza dos objetos exibidos, fossem eles produtos inacabados, como tecidos, ou itens finamente criados para o lar. Os visitantes eram encorajados a olhar cuidadosamente, mas não tocar. Materiais explicativos eram abundantes, incluindo etiquetas escritas, assistentes que demonstravam o maquinário e palestras públicas. O escritor Henry Mayhew descreveu o Palácio de Cristal como uma escola gigante, muito longe dos museus impenetráveis da época.
Além do aprendizado didático sobre materiais e tecnologias, os organizadores esperavam que suas exposições tivessem um efeito “civilizatório”. Assim, o Palácio de Cristal também apresentou as “belas-artes”, incluindo escultura, vitrais e outros objetos “ilustrativos do gosto e habilidade exibidos nas aplicações da indústria humana”.[3]
A hierarquia que distinguia a “arte” como sendo do mais alto gosto e habilidade também implicava em uma hierarquia social, aliando essa elevada categoria de produção com aquelas elites que podiam estudá-la, apreciá-la e colecioná-la. No entanto, mesmo enquanto o Palácio de Cristal parecia reforçar as diferenças sociais, ele também lutava contra elas. Porque ao contrário do Museu Britânico e seus assemelhados, a Grande Exposição era acessível a muitos. Era um lugar onde o trabalhador e o patrão literalmente conviviam, como ilustrado nesta imagem satírica onde o Duque de Wellington está surpreso ao encontrar uma família da classe trabalhadora na feira.
A Grande Exposição permanece
O Museu de South Kensington em Londres, fundado em 1857 e renomeado Museu Victoria & Albert em 1899, foi o herdeiro literal do Palácio de Cristal. Fundado para promover os objetivos da Exposição de tornar objetos artesanais e industriais (em oposição às "belas" artes) disponíveis ao público geral, boa parte de sua coleção veio diretamente da feira. Os objetos foram organizados primeiramente pelo material (cerâmica, metal, vidro), isto é, de acordo com categorias que faziam mais sentido para um artesão visitante. Esses objetos foram exibidos às pessoas não para maravilhá-las com a história, o poder ou a autoridade, mas para melhorar suas vidas, fornecendo-lhes modelos de boa forma e bom gosto.
Para esse fim, o museu também tornou a visitação mais fácil. O primeiro diretor do South Kensington, Henry Cole, recebia os trabalhadores estabelecendo horário de funcionamento nos finais de semana, feriados e à noite (tornando necessária a instalação de iluminação a gás), incluindo dias de entrada gratuitos, publicando informações de transporte e construindo uma praça de alimentação. Embora alguns críticos temessem que Cole fosse atrair “lunáticos, degradados e ” que poderiam danificar as coleções, as grandes multidões se comportaram surpreendentemente bem, como “nas melhores salas de visitas [da Europa]”.[4]
Essas foram adaptações inovadoras, até mesmo radicais, do modelo de museu, mas podemos fazer uma pausa antes de aplaudir demais. Como muitos de seus contemporâneos, Cole acreditava que através de museus de arte ele poderia ajudar a incutir boas maneiras, moral e valores no público visitante, que ele poderia ajudar a "civilizá-los", "fornecendo um poderoso antídoto ao palácio de gin”, como ele disse.[5] Pelos padrões de hoje, sua atitude era paternalista, enraizada na certeza de que ele e outros como ele sabiam o que era melhor para "o povo".
Museus de quem?
A ideia de que o museu de arte poderia ser um espaço moralmente aceitável para ajudar os moradores urbanos ambulantes e desenraizados também foi adotada no outro lado do Atlântico. No final do século XIX e início do século XX, alguns Americanos progressistas viam os museus como locais de reunião seguros: alternativas confiáveis às tabernas e cervejarias que, ao contrário, poderiam atrair e corromper os recém chegados à cidade grande. Foi preciso um inovador como John Cotton Dana no Museu de Newark para buscar equilíbrio entre um museu que pudesse “melhorar” a vida dos moradores da cidade, ensinando-lhes valores da classe alta, e um que permitisse aos visitantes se envolver com as coleções por sua própria conta.
Hoje os museus de arte continuam a ter dificuldades com questões de relevância social, elitismo e propriedade. Muitos profissionais se preocupam com o “medo limiar”, a ideia de que os museus intimidam visitantes que não foram criados em uma cultura de museu e não se sentem bem vindos e representados em suas galerias.
Outros acreditam que os museus de arte estão sacrificando seu papel tradicional ao se dobrarem à cultura popular e ao mercado, exibindo motocicletas, tênis e desfiles de moda para atrair visitantes. Na medida que os museus se tornam espaços de atenção internacional, especialmente pelo turismo, alguns os veem negligenciando as comunidades locais: o Guggenheim Bilbao, por exemplo, tem sido criticado por favorecer artistas internacionais famosos em detrimento dos regionais.
O papel de um modelo de museu global crescente é igualmente complicado. Museus de arte deveriam enfatizar continuidades culturais, talvez encorajando a empatia, ou deveriam destacar diferenças culturais e expressar a diversidade? E quem deve decidir? Claramente, os museus nunca foram espaços neutros, e o conceito de que eles apresentam valores sociais amplamente compartilhados aos quais todos nós aspiramos está muito ultrapassado. Como a recente controvérsia sobre o quadro Emmett Till de Dana Schutz na Bienal de Whitney, em 2017, na cidade de Nova York deixou claro, os museus de arte no início do século XXI são espaços políticos onde as lutas sociais estão se desenrolando em estágios poderosos e altamente visíveis.
Observações:
[1] Testamento de Sir Hans Sloane’s, citado em Rosemary Ashton, Victorian Bloomsbury (New Haven: Yale University Press, 2012), p. 133.
[2] Squire Randal: Excursion round London: ou, a Week’s Frolic in the Year 1776 (London: Richardson and Urquart, 1777), p. 69.
[3] Como descrito na Official Descriptive and Illustrative Catalogue da Grande Exposição (Londres 1851), p. 23.
[4] Black, Barbara J., On Exhibit: Victorians and their Museums (Charlottesville: Editora Universitária de Virgínia, 2000), p. 104; e um estudo citado em 1882 em Lara Kriegel, Grand Designs: Labor, Empire and the Museum in Victorian Culture (Durham: Editora Universitária de Duke, 2007), p. 198.
[5] Cited in Edward P. Alexander, Museum Masters: Their Museums and their Influences, (Nashville: Associação Americana de Historia Estadual e Local, 1983), p. 163.
[2] Squire Randal: Excursion round London: ou, a Week’s Frolic in the Year 1776 (London: Richardson and Urquart, 1777), p. 69.
[3] Como descrito na Official Descriptive and Illustrative Catalogue da Grande Exposição (Londres 1851), p. 23.
[4] Black, Barbara J., On Exhibit: Victorians and their Museums (Charlottesville: Editora Universitária de Virgínia, 2000), p. 104; e um estudo citado em 1882 em Lara Kriegel, Grand Designs: Labor, Empire and the Museum in Victorian Culture (Durham: Editora Universitária de Duke, 2007), p. 198.
[5] Cited in Edward P. Alexander, Museum Masters: Their Museums and their Influences, (Nashville: Associação Americana de Historia Estadual e Local, 1983), p. 163.
Recursos adicionais
Auerbach, Jeffrey A. The Great Exhibition of 1851: A Nation on Display (New Haven and London: Editora Universitária de Yale, 1999).
Black, Barbara J. On Exhibit: Victorians and their Museums (Charlottesville and London: Editora Universitária de Virgínia, 2000).
Dana, John Cotton. “The Gloom of the Museum” (1917), republicado em Gail Anderson, ed. Reinventing the Museum: Historical and Contemporary Perspectives on the Paradigm Shift (Walnut Creek, Cal.: Rowman and Littlefield Publishers, Inc., 2004), pp. 13-29.
Gurian, Elaine Heumann. “Threshold Fear” (2005), republicado em Civilizing the Museum: The Collected Writings of Elaine Heumann Gurian, (Oxon and New York: Routledge, 2006), pp. 115-126.
Maffei, Nicolas, “John Cotton Dana and the Politics of Exhibiting Industrial Art in the US, 1909-1929,” Journal of Design History, Vol. 13, No. 4 (2000): 301-317.
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- Os museus ainda hoje, são lugares que a maioria das pessoas acham que não é para elas. Mais fácil ensinar à criança, que museu é lugar para todos, já vivi essa experiência, ao falar sobre o museu da cidade para os alunos e uma aluna do sexto ano do Ensino Fundamental, conseguiu reconhecer o lugar pela minha descrição e convencer a mãe a entrar, ficaram encantadas as duas.(3 votos)
- Ótimo ponto! O Cineteatro São Luiz, onde trabalho, em Fortaleza, é uma prova disso. Apesar de ter entrada gratuita e portas abertas na popular Praça do Ferreira, no centro da cidade, parte da população se sente intimidada por sua arquitetura e não ocupa o lugar. Mas é comum vermos crianças convencerem seus pais a entrarem, crianças essas que visitaram o espaço anteriormente por meio de suas escolas em algum dos nossos programas de acesso. Democratizar o espaço são nossas lutas e conquistas diárias.(4 votos)
- Então a Arte é como o homem, uma determinada sociedade condensa seu modo de ver e passa essa maneira de expressar sua realidade às gerações futuras?(1 voto)
- Essas tradições culturais ainda é praticada? Quais são os artistas que ainda vivem e produzem este tipo de arte ?(1 voto)